quarta-feira, outubro 25, 2006

TERRA LONGE E DIÁSPORA

À memória de Adriano St. Aubyn que tanto amava S. Vicente e as suas gentes.

Dizem os livros que diáspora é um termo clássico grego, consagrado para significar a dispersão do povo de Deus entre os gentios e as próprias regiões onde os israelitas se encontravam espalhados, irados ou cativos.

Inicialmente a palavra incluía a ideia de castigo e rejeição de Deus. Posteriormente diáspora era sinónimo de dispersão de minorias judaicas pelo mundo helenista como contributo para a história e o progresso do mundo, disseminando o degredo.
zA diáspora é um fenómeno particularmente estático, ao contrário da emigração que, no uso dos nossos dias é dinâmico e referente a indivíduos.

Posto isto, cabe-me perguntar: o que é que a diáspora, a dispersão dos judeus, tem a ver com a emigração dos Cabo-Verdianos? Cabo Verde na diáspora é uma frase elitista, o seu autor achou-a bonita, impingiu-a a todo o mundo sem se cuidar de verificar se ela tem ou não alguma analogia com a realidade do Cabo-Verdiano pelo mundo fora. Gostou da palavra, foi amor à primeira vista, nem reparou se se tratava de uma paixão contranatura, se a noiva sofria de alguma doença, se era virgem, estéril ou parida com filhos de quarenta pais fora passageiros.

O Cabo-Verdiano, o povo emigrante não vive na diáspora, nem sabe o que é a diáspora, ele conhece é a terra longe e, quando parte, não vai tomar posse de nenhuma terra para nela lançar raízes que, diga-se de passagem, nunca transporta consigo, não vai comprar terras para semear milho, feijão, batata, plantar mandioca ou criar galinhas, porcos e cabras. O cordão umbilical fica preso à sua terra porque o sonho da partida e do regresso coabitam desde a primeira hora no seu espírito. Nestes termos, eu propunha a substituição da palavra diáspora por terra longe.

Quem anda na diáspora são os retornados de Angola, da Guiné ou de Moçambique, para esses a terra prometida não é Cabo Verde, vivem dispersos pelas esplanadas, nos cafés de Lisboa, procurando Jerusalém no fundo das chávenas ou nas conspirações histéricas e inconsequentes contra tudo e contra todos e, para variar, cortando até na casaca do patrício que passa ao longe com uma branca a tiracolo. Os mais descarados, os mais hábeis em ordenhar as tetas magras da mamãe terra, os mais capazes de tirar leite mesmo das partes pudicas dum boi, quando regressam tomam partido dos que comem no tacho e nunca dos que apenas sentem o cheiro da comida.


O Cabo-Verdiano, o emigrante anónimo tem outra postura quando está na terra longe, não vive especado espreitando na esquina da vida o destino dos outros povos porque tem um caminho a seguir, um rumo traçado na rosa-dos-ventos e uma meta a alcançar, Cabo Verde está sempre na sua linha do horizonte. O emigrante, aquele que parte com os bolsos vazios e o coração cheio de fé e de esperança tem apenas uma ideia, trabalhar duramente, por isso não se intromete na política do país que o acolhe, não conspira, não fomenta a divisão de classes, não cultiva o racismo, não é uma chaga social, não se organiza com o fim de a curto ou longo prazo interferir na governação do país onde vive de empréstimo, com o peso de uma possível chantagem económica como acontece, por exemplo, nos Estados Unidos da América do Norte, com uma determinada raça.

O Cabo-Verdiano parte à procura de qualquer trabalho compensador, seja ele qual for e, graças à sua grande capacidade de adaptação ao meio em que passa a viver, dá o seu contributo, recebe o seu salário, guarda uma parte e só pensa em regressar para ficar.

Pergunto agora, ficar como? Ele quer ter uma casa, montar um negócio, porque o dinheiro que trouxe, se não for movimentado acaba um dia, não se autoengravida, não se multiplica. O emigrante quer ver dinheiro que ganhou lá fora valorizado no seu país, não quererá vê-lo trocado por um papel que lhe faça lembrar as senhas que circulavam nas roças de S. Tomé. O escudo Cabo-Verdiano, no que respeitava ao câmbio não encorajava ninguém, havia um certo descuido com as divisas enviadas pelos emigrantes, era uma fonte que tendia a secar. Felizmente que hoje, com os acordos assinados, as perspectivas são óptimas. Quanto ao regresso final à terra de onde partiu um dia cheio de saudades mas animado por um legítimo sonho, a tendência é pensar duas vezes; ele quer voltar e viver em conformidade com os seus anseios, viver contente consigo próprio e com o mundo que o rodeia, sem recalcamentos, sem angústias, sem medo de fantasmas de amanhã. Voltar ou não voltar, eis a questão, se por lá ficar, sabe que tem de enterrar com amargura os seus sonhos, sente uma certa frustração por não poder, finalmente, justificar a razão da sua partida.

É constrangedor e revoltante ter que viver sempre num país estranho sob o estigma do sim senhor. Se optar por voltar, ele quer vir e sentir que é gente e poder, assim, ter a sua própria independência. Acontece que a independência que lhe dá o seu país não lhe serve, a independência de um povo não se consubstancia num regime democrático que o governa, não está na tribuna livre de um jornal, numa estação de televisão, nos microfones de uma estação radiofónica ou no ensino patético do crioulo nas escolas, a independência de um povo está no seu bem estar social, no fumo permanente dos chaminés das casas, na caldeira ao lume, no aproveitamento da sua força física e mental e no seu equilíbrio familiar, no sorriso das crianças e na segurança dos mais idosos. A independência de um povo está na comparticipação do usufruto das riquezas da sua terra.

Dizer que Cabo Verde é pobre é conformismo dos pobres de espírito, esses são estrábicos e teimosos, recusam-se frontalmente a pensar que para além do seu horizonte visual há qualquer coisa de positivo, há qualquer coisa de bom e de útil por explorar, implementar e fomentar, qualquer coisa que possa substituir a malfadada chuva que ao longo dos anos tem servido de desculpa aos responsáveis quer pela governação, quer pelo destino do povo das nossas ilhas. Contar com a chuva é contar com sapato de defunto. Vive-se e morre-se sob o signo da chuva, a chuva serviu bem os devaneios dos coronéis da literatura claridosa, bem como os desmandos e derrapagens políticas dos comandantes da nossa terra. A chuva deve ser considerada simplesmente como um complemento dos recursos naturais de Cabo Verde.


Não cabe aqui questionar sobre as nossas riquezas, se vêm sendo exploradas com eficiência ou se alguma ainda repousa calmamente no leito dos mares do arquipélago. É assunto para discutir numa outra estação, porém, convém frisar que a exploração de todas essas riquezas, mesmo a 100% não absorverá toda a mão-de-obra disponível e muito especial a de certas zonas superpovoadas de Cabo Verde, por exemplo, como a cidade do Mindelo. Uma gota humana faz transbordar o cálice cheio de uma sociedade compacta. A Europa, no decorrer dos anos tem sido o eldorado da emigração Cabo-Verdiana. Longe vai o tempo da América, Argentina e Dakar (Senegal), depois vieram Holanda, França e Luxemburgo e agora Portugal. Foi a hora da partida, está chegando a hora do regresso porque terra longe tem gente gentio e gente gentio come gente.

O acordo de Schengen exige uma Europa só para os europeus. Aquela Europa que invadiu a África, alterou as suas fronteiras naturais, explorou e massacrou todo o seu povo, não quer o africano percorrendo as suas ruas, habitando as suas casas, trabalhando nas suas roças ou transando com as suas mulheres. Os que ali estão legalmente vão sobrevivendo mais pela graça do sim senhor do que pelo apoio das autoridades locais, das associações ou ainda das representações consulares.

No caso específico de Portugal, há que ter em conta duas gerações e a segunda geração não é uma geração de marginais. A sociedade é que a empurra para as margens, fazendo-a sentir-se deslocada e injustiçada. Nos fins de semana a tendência é libertar-se da angústia e do recalcamento que a sufoca. Nessas ocasiões surgem as provocações, a minoria contra uma maioria que ataca em alcateia, então as pessoas, quando espezinhadas, humilhadas, ameaçadas, encurraladas só pensam em salvar a pele mas, primeiro querem deixar a honra lavada recorrendo ao sangue como detergente possível.

Na outra face da moeda, porém, temos o problema dos que compulsivamente regressam mas, que venham na crista das ondas, no dorso das tartarugas gigantes, nas asas das águias marinhas ou nos tapetes mágicos de todas as arábias do mundo, que o bom regaço da mamãe terra os receberá com calor e abrangência. Que venham também os que vivem na diáspora visitar esse Cabo Verde que os filhos que estiveram na terra longe ajudaram a criar com muito "sim senhor", com suor e mar salgado no rosto, que venham todos com um sorriso nos olhos e dizer "sim, mamãe terra, nós estamos todos aqui ao pé de ti.


DANTE MARIANO
05/10/1932-05/02/2001

4 comentários:

Anônimo disse...

“A distância não provoca o esquecimento, mas a saudade.” – Pensamento de um recluso.

João Mariano

Anônimo disse...

Ontem pensei compulsivamente em ti
Todavia,
A estrada vazia permaneceu.

Agora,
Quero lembrar-te
E a minha retina não te vê.

Falarei contigo através das ideias?
Olho o teu retrato,
Por vezes, perfuras meu pensamento.
Falarei contigo através das ideias?

Quando a tardinha chegar
Gostaria de estar contigo
Num banquinho sentados
Conversando acerca dos anéis que nos rodeiam.

Até um dia companheiro
Revejo-te na distância
Da luz perfeita e clara
Que a terra desenhou.

Anônimo disse...

ontem, pensei compulsivamente em ti
todavia,a estrada vazia permaneceu
agora,quero lembrar-te.
falarei contigo através das ideias?
gostaria de estar contigo
quando a tardinha chegar,
num banquinho sentados
conversando e saboreando uma moreia frita.

Anônimo disse...

Excelente texto!!! muito bemmm!

Kizó